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→ Arqueologia do cotidiano: objetos de uso, André Parente e Katia Maciel
 

→ Alô, é a Letícia?, André Parente
 

→ A medida da casa é o corpo, Katia Maciel
 

→ A videoarte de Letícia Parente, Rogério Luz
 

→ A terceira via. Entrevista, Fernando Cochiaralle
 

→ Um mundo aparente, Jorge La Ferla
 

→ Eu mundo de mim, Clarissa Diniz
 

→ Persistência da consciência: marcas da identidade, Cristina Tejo
 

→ Letícia Parente: a videoarte como prática da divergência, Luiz Cláudio da Costa
 

→ Retrato de Letícia Parente, Fernando Cocchiaralle 
 

→ Medidas, por dentro e por fora, Roberto Pontual 

O corpo inscrito na criação poética de Letícia Parente, Kathleen Raelle de Paiva Silveira. 

 

→ Sobre a arte do vídeo. Regimes de visibilidade do corpo fragmentado: Letícia Parente e Lia Chaia, Regilene Sarzi-Ribeiro.
 

→ A figura humana na obra de Letícia Parente: Traços, medidas e proporções, Manoel Silvestre Friques
 

→ As três gerações do vídeo Brasileiro, Arlindo Machado
 

→ Corpos, subjetivações estéticas e arte e feminismos: passagens na pesquisa em Psicologia, Roberta Stubs, Fernando Silva Teixeira-Filho, Dolores Galindo, Danielle MilioliII

→ A vídeoarte no Brasil: Uma perspectiva histórica​, Thamara Venâncio de Almeida

 

→ Corpografia: Análise da produção poética das artistas Letícia Parente, Regina José Galindo e Andressa Cantergiani

→ Visualidades e Gênero: Experimentação e Subversão em Letícia Parente e Márcia X, Fabiana Lopes de Souza, Maristani Polidori Zamperetti 

→ Letícia Parente in Pacific Standard Time - LA/LA (Los Angeles/Latin America), Paulina Pardo Gaviria

→ O primeiro vídeo de Letícia Parente: A parede de um edifício chamado Brasil, Katia Maciel

→ O corpo e a mulher que ali está: Ensaios visuais de três artistas mulheres no Brasil de 1968 a 1975, Thainá Maria da Silva e Bianca Knaak 

→ O Corpo entre a arte e o Dicionário do Lar: uma leitura sobre os vídeos domésticos de LetíciaParente, Silvia Amélia Nogueira de Souza

 

→ The disciplinary and the domestic: Household images in the video performances of Letícia Parente, Gillian Sneed

 

→ O uso do corpo como meio de comunicação na videoarte brasileira: Letícia Parente, Analívia Cordeiro, Otávio Donasci

 

→ Letícia Parente: Embodying New Media Art Strategies in 1970s Brazil, Paulina Pardo Gaviria

 

→ Diaporamas: um estudo crítico de audiovisuais na arte brasileira (1972-1975), Roseane Andrade de Carvalho

 

→ Sonia Andrade e Letícia Parente, duas videoartistas brasileiras em uma exposição de arte feminista de vanguarda dos anos 1970, Ana Claudia Camila Veiga de França, Ronaldo de Oliveira Corrêa

 

→ Videoarte e Vídeodança: Letícia Parente e as Novas Artes na Terra do Sol, Liliane Luz Alves, Tito Barros Leal

 

→ Videoarte no Brasil dos anos 1970: a anti-televisão rumo a democracia das massas, Carolina Amaral de Aguiar
 

→ Testemunho sobre a vídeo-arte no Brasil, Cacilda Teixeira da Costa 
 

→ O "MAC do Zanini", videoarte e pioneiros: 1974-1978, Carolina Amaral de Aguiar 
 

→ Participação e interatividade em vídeo-instalações, Roberto Moreira da S. Cruz 
 

→ Tela-Pele, Stella Senra

→ 8th International Vídeo Art Festival

 

→ Mostra A Subversão dos Meios

→ A Carne da imagem, Marisa Flórido Cesar

→ Vias distorcidas: Costuras, ressignificações e a sensibilidade que se renova com o tempo, Daniela Castro

→ Origens, registros e deslocamentos em Marca registrada, Manoel Silvestre Friques

→ O corpo em primeiro plano - Uma análise do vídeo Marca Registrada de Letícia Parente, Regilene Aparecida Sarzi Ribeiro

→ Corpo, videoarte e o papel das linguagens midiáticas na construção de sentido e visualidade das artes visuais, Regilene Aparecida Sarzi Ribeiro

ALÔ, É A LETÍCIA?

André Parente

Escrever sobre a Letícia me coloca muitas dificuldades. Não sou apenas filho dela, sou também filho de seu trabalho. De fato, muito do que eu faço, seja no plano da criação artística, seja no plano intelectual, me remete de alguma forma a seu trabalho. Por outro lado, eu fui não apenas uma testemunha atenta de sua obra, mas também um colaborador em níveis muito diversos, sempre presente e interessado: fui modelo, fui câmera, fui fotógrafo, fui produtor e fui mesmo coautor.

 

A obra de Letícia Parente não é muito conhecida, seja da crítica, seja do grande público. Isso se deve, em parte, ao fato de que a arte mídia só veio a ganhar espaço no circuito de arte no Brasil muito recentemente. Mesmo se restringirmos a arte mídia a um dos seus principais meios de expressão, a videoarte, nenhum dos grandes artistas do mainstream é videoartista. Nenhum dos críticos do mainstream tampouco tem sequer um texto relevante sobre videoarte no Brasil. 

Por um outro lado, muito do que foi produzido em termos de arte e mídia no Brasil, nos anos 1970, foi perdido. Grande parte dos trabalhos de xerox e arte postal, bem como de  vídeo e videotexto foi perdida, seja porque tratava-se de materiais frágeis, seja por causa da obsolescência dos equipamentos, seja pelo despreparo da instituição da arte do Brasil (que inclui os museus, os colecionadores e os artistas) no que diz respeito ao arquivo. Mais de um terço dos vídeos de Letícia foram perdidos porque ela enviava para as exposições seus próprios “masters”, uma vez que não tinha, à época, como fazer cópias de seus trabalhos2.

Em geral, a obra de Letícia é conhecida por meio de seus vídeos. Entretanto, o vídeo não foi sequer o seu principal meio de expressão. Ela foi iniciada em arte tardiamente, com 40 anos (1971), nas oficinas de Ilo Krugli e Pedro Dominguez, no Rio de Janeiro. Já de volta a Fortaleza, depois de participar de várias exposições coleti- vas e receber um prêmio de aquisição do Salão de Abril, realiza, em 1973, sua primeira exposição individual (Museu de Arte da Universi- dade do Ceará – MAUC) com um conjunto de 29 gravuras.

Em 1974, muda-se para o Rio de Janeiro, para fazer o doutorado, e continua a frequentar oficinas de arte. Entre todos os seus professores, o único que deixou marcas em sua obra foi Anna Bella Geiger, de quem ela herdou um certo tipo de poética conceitual na qual se dissolve a separação entre os aspectos visuais e conceituais da obra, entre arte e vida, arte e política. Ainda no final de 1974, alguns colegas e ex-alunos de Anna Bella constituem um grupo de arte decisivo para seu trabalho futuro.

Entre 1974 e 1982, esse grupo, que passou a ser conhecido como o pioneiro da videoarte no Brasil, formado por Anna Bella Geiger, Fernando Cocchiarale, Sônia Andrade, Ivens Machado, Paulo Herkenhoff, Letícia Parente, Miriam Danowski e Ana Vitória Mussi, produziu uma série de vídeos que circularam em grande parte dos eventos de videoarte no país e no exterior. Na verdade,  o vídeo era apenas um dos meios empregados entre muitos outros, como a fotografia, o audiovisual (a projeção de slides com som), o cinema, a arte postal, o xerox e a instalação. 

A produção desse grupo de artistas, entre eles Letícia, foi fundamental para a história da arte e mídia no Brasil. Não apenas eles estão entre os pioneiros no uso que se fez desses meios como sua produção teve um impacto entre seus pares.

Roberto Pontual costuma situá-los como parte do que ele veio a chamar de Geração 70 (entre os quais estão, além do grupo citado, Antônio Manuel, Ana Maria Maiolino, Cildo Meireles, Artur Barrio, João Alphonsus, Waltercio Caldas, Iole de Freitas, Tunga, entre (outros), composta por artistas de tendência experimental e/ou conceitual que surgiram concomitantemente ao aprofundamento da crise do repertório modernista e formalista, à emergência, no Brasil, dos novos suportes e meios de produção imagética (fotografia, cinema, audiovisual, artes gráficas, arte postal, xerox) e à criação de novos espaços, entre eles a área experimental do MAM do Rio de Janeiro e o MAC de São Paulo

 

O Audiovisual

 

O audiovisual desempenhou um papel jamais devidamente analisado na produção de alguns artistas nos anos 70. Muito se falou sobre os Quasi-Cinema, de Hélio Oiticica e Neville d’Almeida, por se tratar não apenas de um audiovisual, mas de uma instalação audiovisual; muito pouco, porém, sobre as experiências dos outros artistas. Segundo Frederico Moraes, ele também autor de algumas experiências de audiovisual, tratava-se de um veículo propício à documentação das obsessões dos artistas e dos problemas brasileiros, a exemplo do documentário cinematográfico. 

Letícia realizou um conjunto de audiovisuais. Em seu Eu Armário de Mim, ela nos mostra uma série de imagens de um mesmo guarda- roupa onde desfilam os objetos (roupas brancas, roupas pretas, temperos, papéis amassados, condimentos, cadeiras, objetos de culto) e as pessoas (em um deles, todos os cinco filhos são colocados dentro do armário) da casa, compondo uma estranha taxonomia e um retrato miniaturizado do lar e da artista. Ao mesmo tempo em que vemos as imagens dos objetos que compõem essa estranha taxonomia, escutamos a artista pronunciar, sob a forma de reza, o refrão “Eu, armário de mim”. Como em outros trabalhos dela (a série de arte xerox Casa, o vídeo In), as imagens, objetos e gestos do cotidiano nos revelam, como disse a artista, uma “arqueologia do tempo presente". 

A arte postal 

 

Letícia era profundamente construtivista, ou seja, acreditava ser a realidade o ponto de chegada, e não o de partida. Não se tratava, portanto, para ela, de representar uma realidade preexistente, mas de usar as imagens para produzir um efeito de realidade. Em seus trabalhos de xerox, temos distintas séries, das quais as mais conhecidas são Casa e Mulheres. Nelas, a artista pretende utilizar códigos gráficos à sua disposição para falar da condição da mulher em nossa sociedade. A casa é mais do que apenas um território ou um espaço neutro: é lugar de confluência de signos e redes que nos compõem e nos produzem. 

Em uma das imagens da série Casa, a artista propõe um mapa de uma cidade composto por duas cidades: a Cidade da Bahia (como se chamava Salvador antigamente) e o Rio de Janeiro. Essa é a cidade imaginária de Letícia que antevê, de alguma forma, a cidade relacional, a cidade-rede, cidade topológica, concebida no projeto de Nelson Brissac, Brasmitte, que une a cidade de São Paulo à cidade de Berlim, por meio dos bairros Brás e Mitte. Letícia era uma artista do pensamento topológico, heterotópico: sua casa é feita de signos e códigos diversos, de redes e de relações.

 

Xerox

 

A questão do corpo na arte vem sendo discutida de forma exausti- va nestes últimos anos. No Brasil, desde o “quase corpo” (o corpo como problema) da obra neoconcreta, que via na obra de arte um “prolongamento da corporalidade”, aos happenings e performances dos anos 1960, em que o corpo do artista se tornou um dos principais personagens, por meio do qual as obras vieram a se revelar como um processo de produção de subjetividade. Trata-se, antes de mais nada, de mostrar que o corpo é por natureza algo que escapa aos modelos de racionalidade e disciplinaridade cartesianos, iluministas, fordistas, tayloristas. O corpo é fundamentalmente da ordem da produção, do desejo, do inconsciente, algo que está sempre escapando ao processo de reificação do corpo como dado, como ordem, como modelo. E mais, o corpo não é espaço, visto que é processual, não apenas porque se inventa e se reinventa sem cessar, mas porque vai até onde vão os nossos hábitos e desejos.

Muito do trabalho de Letícia bebeu desta fonte, de uma espécie de neokantismo, seja ele estruturalista ou bachelardiano, em que a estrutura é uma categoria topológica e virtual, pura condição de possibilidade do que vemos, sentimos e fazemos. Seguindo essa linha de pensamento, Letícia sempre parte do corpo ou da casa como os lugares privilegiados para exprimir, ao mesmo tempo, o muro que separa o que liberta daquilo que aprisiona. É nesse sen- tido que, a nosso ver, ganha importância a imagem do xerox do alfinete, ao lado do qual se escreve “liberta, aprisiona”.

Em outro de seus xerox, vemos uma série de imagens dos quadros de Brueghel, nos quais os personagens são como que aprisionados, sujeitados, amordaçados por meio de cestas e gaiolas. Trata-se, aqui, de uma imagem recorrente na obra da artista, para quem se a arte tem um papel, é porque ela nos leva a repensar os processos de subjetivação.  

 

Fotografias

 

Uma das séries mais conhecidas do trabalho fotográfico de Letícia é a Série 158, em que ela se apropria de imagens de rostos de modelos em revistas femininas. Ela submete as imagens dos rostos a deformações, de maneira a tornar um rosto mais longilíneo ou o contrário. Essa ação visa a deflagrar uma problematização das taxonomias caracterológicas, que tendem a interpretar o determinismo de certos aspectos físicos sobre os aspectos psicológicos. 

Curiosamente, esse trabalho nos chama a atenção para os artistas do digital, que vieram a produzir deformações dos rostos por meio do uso do Photoshop (é o caso, por exemplo, do trabalho de Helga Stein). Na verdade, quando se vê, hoje, o trabalho de Letícia, percebe-se que ela visava a desencadear uma problematização dos modelos sociais de apreensão do rosto.

Em uma outra série fotográfica sem título – fotografias que eu fiz do corpo da própria artista a seu pedido e em função de suas ideias –, Letícia submete seu corpo a uma série de torções e tensões. Aqui, vemos claramente que o corpo não é mais tomado em uma imagem apaziguadora, cartesiana, do corpo.  Portanto, o corpo não é mais o que separa o sujeito do objeto, ou melhor, o pensamento de si mesmo, mas é como algo no qual se deve “mergulhar” (o mergulho no corpo era como que a fórmula produzida por Hélio Oiticica para exorcizar o platonismo, o purismo, o formalismo modernista) para ligar o pensamento ao que está fora dele, como o impensável.

O que é o impensável? É, em primeiro lugar, o intolerável que leva ao grito silencioso de um corpo torturado involuntariamente, silencio- samente; é o desespero que leva a artista a contorcer seu corpo até se deformar em gestos inúteis, vazios, inqualificáveis; é a cerimônia estranha, que consiste em forçar o corpo a se libertar por meio de atitudes fora de convenções; é, sobretudo, submeter o corpo a uma cerimônia, teatralização ou violência, como no caso em que o corpo tenta se mostrar em uma postura impossível. 

 

O vídeo

 

Nos vídeos dos pioneiros, em geral realizados em um único plano- sequência, gestos cotidianos repetidos de forma ritualística – subir e descer escadas, assinar o nome, maquiar-se, enfeitar-se, comer, brincar de telefone sem fio – são encenados de modo a produzir uma imagem do corpo. Neles, a imagem é uma inflexão, uma dobra, mas a dobra passa pelas atitudes do corpo, pelo “mergulho no corpo”.

A questão do corpo retorna aqui como um conceito ou atitude crítica, que visa a nos forçar a pensar o intolerável da sociedade em que vivemos. Em Passagens (1974), Anna Bella Geiger sobe e desce lentamente escadas em um ritmo constante, como em um rito de passagem; em Dissolução

(1974), Ivens Machado assina o seu nome uma centena de vezes até ele se dissolver; Sônia, em Sem Título (1975), entra em transe como forma de reagir contra o intolerável da televisão que atrapalha a sua refeição; em A Procura do Recorte (1975), Miriam Danowski recorta bonequinhos em folhas de jornal como forma de transmutar os pequenos gestos em rituais transgressivos; em Estômago Embrulhado, Paulo Herkenhoff transforma o ato visceral de comer jornal em uma irônica pedagogia de como “digerir a informação”; em um vídeo coletivo, Telefone sem Fio (1976), o grupo de artistas, dispostos em círculo, brinca de telefone sem fio enquanto a câmara roda em torno deles e o espectador assiste ao processo de transformação da informação em ruído, revelando, por meio de uma brincadeira popular, uma das principais questões teóricas da comunicação (o ruído é parte do processo de comunicação e não apenas interferência).

 

A obra de Letícia Parente é marcada pela ideia de extrair do corpo uma imagem que nos dê razão para acreditar no mundo em que vivemos. Os vídeos dessa artista são, cada um deles, preparações e tarefas por meio dos quais o corpo revela os modelos de subjetividade que o aprisionam. Em Marca Registrada (1975), Letícia, seguindo uma brincadeira nordestina, costura, com agulha e linha, na planta do pé, as palavras Made in Brasil, ao mesmo tempo em que revela o processo de coisificação do indivíduo, presente em vários de seus vídeos; no vídeo In (1975), vemos a artista entrar em um armário, como se tivesse virado roupa; em Tarefa I (1982), a artista se deita em uma tábua de passar e uma preta passa a sua roupa a ferro (o contraste entre as mãos da negra que passa a ferro, mas cujo rosto está fora de quadro, e a mulher branca deitada na tábua de passar faz deste vídeo uma versão tropicalista do quadro de Manet); no vídeo Preparação I, a artista se prepara para sair mas, ao se maquiar, ela cola esparadrapo em seus olhos e em sua boca, como para revelar que seus olhos e sua boca são pura máscara, ditada pelas convenções; em Preparação II, a artista se aplica uma série de vacinas contra preconceitos (racismo, colonialismo cultural, mistificação da arte, etc.).

Esses vídeos guardam muitas características comuns: são todos eles realizados no espaço doméstico; a artista é quem realiza as ações que remetem (quase todas) às ocupações femininas (guardar roupa, passar roupa, costurar, se maquiar, etc.); nenhum deles contém falas; todos são realizados em plano-sequência. Isso me fez pensar na possibilidade de fazer uma instalação, onde eles fossem projetados lado a lado, em uma grande parede de 20 metros, de forma que os aspectos comuns – a coisificação da pessoa, a condição feminina, a opressão das tarefas e preparações cotidianas – fossem potencializados.

Para alguns críticos, os trabalhos de Letícia e do seu grupo são como que registros de performances. Isso porque os aspectos técnicos da filmagem e da montagem são relegados a um segundo plano. Em todo caso, o que importa é que nos vídeos dos pioneiros a câmera e a filmagem agem sobre os corpos e personagens como um catalisador. Entretanto, hoje fica cada vez mais claro que os trabalhos de videoarte diferem dos outros em parte por uma espécie de secura, de quase ausência de decupagem e de montagem. Na verdade, há um desconhecimento da própria história do cinema de artista aliado a uma certa postura de colonizado. Não creio que se dissesse isso sobre filmes de Andy Warhol e Michael Snow. Os corpos monogestuais de Warhol (alguém dorme (Sleep)), alguém come (Eat), alguém “experimenta” um boquete (Blow Job), alguém se beija (Kiss) e os planos-sequência vazios de Snow (os 45 minutos de zoom de Wavelength, as três horas de movimentos panorâmicos de La Région Central) são uma das principais tendências do cinema experimental, em um processo de radicalização dos tempos mortos do cinema do pós-guerra (Neo-Realismo, Nouvelle Vague, Cinema Novo mundial). 

 

As instalações

 

Dentre todos os seus trabalhos, o mais expressivo e atual a nosso ver é a instalação Medidas. Em primeiro lugar, Medidas reúne os principais conceitos e elementos do trabalho de Letícia: o corpo, o rosto, a transformação da ação física, da presença em ação cognitiva, e sobretudo a problematização dos modelos de produção de subjetividade. Em segundo lugar, Medidas utiliza os principais suportes e meios de expressão utilizados por Letícia ao longo de sua carreira, a fotografia, o audiovisual, o xerox, a instalação, entre outros. Evidentemente, os novos meios de produção de imagem não são, no caso de Letícia, determinantes – neles, o meio não é a mensagem, como diria McLuhan –, mas são sem dúvida condicionantes, isto é, são a condição. Medidas é, a nosso ver, a primeira grande manifestação de arte e ciência no Brasil.

O texto que Roberto Pontual escreveu sobre Medidas no Jornal do Brasil (24/06/1976), apresenta uma descrição bastante interessante da exposição. Entretanto, há uma série de questões a serem aprofundadas. Uma delas diz respeito à forma como Letícia se aproxima da estratégia estruturalista, em particular Michel Foucault, de desnaturalizar o corpo, de pensar o corpo como algo que é produzido pelas forças biopolíticas. O que é interessante no pensamento Estruturalista – um pensamento do dispositivo, por excelência –, é que ele procura pensar os campos de força e relações que constituem os sujeitos e signos dos sistemas culturais para além de suas particularidades psicológicas (pessoalidade) e metafísicas (significação). O pensamento estruturalista é relacional, embora tenha guardado um resquício de idealismo, seja porque acredita em estruturas essenciais e formas a priori (por exemplo, o incesto e a castração para a psicanálise e para a antropologia), seja porque acredita na homogeneidade dos elementos que formam a estrutura (são da mesma natureza).

Segundo Foucault, um dispositivo possui três níveis de agenciamentos: 1) conjunto heterogêneo de discursos, formas arquitetônicas, proposições e estratégias de saber e de poder, disposições subjetivas e inclinações culturais, etc.; 2) a natureza da conexão entre esses elementos heterogêneos; 3) a “episteme”ou formação discursiva no sentido amplo, resultante das conexões entre os elementos. Na verdade, a visada sistemática da concepção foucaultiana está plenamente contemplada na etimologia da palavra “dispositivo”.

Há dispositivo desde que a relação entre elementos heterogêne- os (enunciativos, arquitetônicos, tecnológicos, institucionais, etc.) concorra para produzir no corpo social um certo efeito de subjetivação, seja ele de normalidade e de desvio (Foucault), seja de territorialização ou desterritorialização (Deleuze), seja de apaziguamento ou de intensidade (Lyotard). No caso de Letícia, as medidas são efetivadas para produzir no corpo dos visitantes um efeito de desocultamento dos dispositivos sociais.

Nesse sentido, o que ela faz é criar uma situação, um dispositivo (na verdade, um conjunto de dispositivos) interativo de medição do corpo. Não se trata de forma alguma de medir para fazer o visitante (aqui, o espectador já não tem mais nada de espectador, ele é “interator”, no sentido mais forte desta palavra) conhecer o seu corpo.  A estratégia é muito mais desvelar o trabalho, ocultado pelo sistema produtivo, por meio do qual produzimos nosso corpo ao tentarmos nos adequar aos modelos que o sistema secreta, em função de suas estratégias de saber, de poder e de produção de subjetividade (os três eixos principais do sistema de pensamento foucaultiano).

Na verdade, a exposição de Letícia joga com duas estratégias básicas: um dispositivo de mobilização do espectador (que age no nível sensório- motor, ou seja, das ações perceptivas, físicas, afetivas), no sentido de operar as medições solicitadas; por outro lado, um processo de desocultamento, no sentido de levar pouco a pouco a perceber que as ações que fazemos no nível sensório-motor têm como consequência a crença de que nosso corpo é natural quando, na verdade, ele é fruto de uma negociação permanente entre os modelos do sistema (as normas, as prescrições, a disciplina, o conceito de saúde, do que é ou não melhor para o corpo, enfim, os modelos de racionalidade e de funcionalidade do corpo) e os nossos próprios desejos.

Trata-se fundamentalmente de uma exposição de arte e ciência na medida em que ela desencadeia no visitante um confronto entre seus corpos e desejos singulares e os modelos científicos (ou pseudocientíficos) que ditam as normas e as prescrições que pretendem calibrar a relação entre risco e prazer sobre os nossos corpos. Ao contrário das manifestações de arte e ciência em geral, aqui a ciência é desnudada no sentido de que não é neutra; ela é o campo por excelência de produção de subjetividade. Portanto, ao contrário da maior parte dos artistas que usam a ciência para produzir arte (mas, na maior parte dos trabalhos de arte e ciência, a ciência é o personagem principal da obra, de forma completamente anódina), Letícia faz da arte uma forma de nos libertar de uma certa visão da ciência.

 

NOTAS

 

1 Trata-se de uma frase dita em um vídeo de Letícia Parente intitulado A Chamada (1978), material considerado perdido. Na própria descrição da artista: “A artista entra num apartamento, chega à sala onde numa mesa está um gravador de som e um telefone. Grava numa fita a pergunta: ‘ALÔ, É A LETÍCIA?’. Repete a pergunta muitas vezes. Pára a gravação. Volta a fita. Aciona de novo o gravador e deixa a pergunta ecoando. Liga o telefone para o seu próprio apartamento e deixa o fone perto do gravador. Sai do apartamento, desce as escadas, chega à rua, desce a ladeira, entra no seu próprio prédio, sobe as escadas, chega à porta de seu apartamento, abre a porta com a chave, escuta o telefone tocando, retira-o do gancho, ouve sua voz gravada perguntando: ‘ALÔ, É A LETÍCIA?’. Responde: ‘É A LETÍCIA...

2 Isso foi, aliás, o que a motivou a realizar duas cópias do seu vídeo Marca Registrada, um preto-e-branco (1975) e outro colorido (1980). Na verdade, o master da primeira versão foi dado como perdido, em uma mostra na Argentina, no CAIC, tendo retornado anos depois.

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